Para além da obediência: por que nós escolhemos o adestramento positivo?

Para além da obediência: por que nós escolhemos o adestramento positivo?
Gaia e sua adestradora, Carolina Jardim, da Turma do Focinho

Quando nós decidimos ter um Border Collie, sabíamos que nossa rotina iria mudar e que iria ser um grande desafio, então antes mesmo da Gaia chegar fomos atrás de informações sobre adestramento - fizemos vários cursos online, preparamos o enxoval e estávamos confiantes de que daríamos conta de tudo. Mas, quando ela finalmente chegou, a Gaia virou nossa rotina de cabeça para baixo. Era uma filhote muito fofa, mas com MUITA energia, pastoreava e mordia a gente, fazia xixi pela casa e não gostava de ficar sozinha, o que fez a humana aqui surtar um pouco, rs.

Foi então que decidimos procurar ajuda profissional. Não tínhamos experiência com adestramento, então nos deparamos com diversas opções de profissionais, com diferentes abordagens. Percebemos que essa escolhe definiria diretamente qual o tipo de relação que iríamos construir com a Gaia.

Claro que alguns dos nossos objetivos eram que ela fosse educada, que respeitasse as regras da casa, fizesse xixi e cocô no lugar certo, aprendesse alguns truques e "se comportasse" quando precisássemos. Mas só isso não era suficiente. Nós também queríamos que ela fosse uma cachorra equilibrada, confiante, que se sentisse segura e respeitada com a gente. Não queríamos uma relação de obediência e submissão, queríamos uma relação de respeito e cooperação.

A única forma de alinhar tudo isso é através do adestramento positivo.

O que é o adestramento positivo?

Mas afinal, o que exatamente é o adestramento positivo? A adestradora da Gaia, Carolina Jardim, Psicóloga, pós-graduada em Comportamento Animal, treinadora de cães e fundadora da Turma do Focinho, explica da seguinte forma:

"Treinamento positivo significa, na realidade, educar sem provocar medo ou dor, ou seja, ensinar sem o uso de punições positivas (para diminuirmos comportamentos que não queremos, como pular nas pessoas, puxar no passeio, cavar buracos, morder etc.) e sem o uso de reforços negativos (para aumentarmos comportamentos que queremos, como sentar, ficar, deitar, andar junto etc.). Ao contrário, utiliza-se somente reforços positivos (como petiscos, comida, brinquedos, carinho, elogios, passeio etc.) para aumentar a frequência de comportamentos desejados e, em último caso, punições negativas para diminuir a frequência dos comportamentos que não desejamos (retirando a atenção e frustrando o cão no comportamento indesejado)." [1]

Mas não é só isso. A Carolina defende que o "treinamento positivo vai muito além do reforço positivo simplesmente. O treinamento positivo envolve uma nova maneira de olhar a nossa realidade e a dos cães com uma supercâmera, como se pudéssemos colocar uma lente de aumento e analisar nossas escolhas, nossos impulsos e nossas motivações. Porque, para se educar um cão baseando-se na ciência do comportamento, precisamos nos questionar sobre a nossa ética, refletir sobre nossas ações e suas consequências. Treinar de forma positiva é ensinar ao cão aquilo que se deseja, para que ele aprenda a fazer boas escolhas em situações importantes." [2]

Mas funciona mesmo?

Adestradores punitivos ou mistos ainda se utilizam de mitos, como o da dominância e o do líder da matilha, para justificar o uso de aversivos no treinamento de cães. De acordo com esses mitos, os cães, assim como os lobos, se organizam em estruturas hierárquicas de matilha e, sendo assim, os humanos têm que se colocar na posição de líderes para "mostrar quem manda", colocando o cão em um lugar de submissão.

Ocorre que os experimentos que embasaram essas teorias foram provados incorretos e ultrapassados. E isso não é apenas minha opinião ou de adestradores positivos, mas um fato comprovado por diversos estudos científicos mais recente sobre o assunto [3].

Os treinadores punitivos e mistos criticam o treinamento positivo, dizendo que o método não funciona com cães de grande porte ou que apresentam agressividade. Dizem, ainda, que cães treinados com reforço positivo não possuem limites e "fazem o que querem". Mas, novamente, os estudos científicos mais recentes mostram o contrário: cães treinados apenas com método positivo são mais educados do que os cães treinados com aversivos e cães cujos donos utilizavam castigos são mais susceptíveis de ter problemas comportamentais, como fobias e agressividade. [4]  

Então sim, é cientificamente comprovado que o adestramento positivo não apenas funciona, como é o método mais eficaz para educar o seu cão, especialmente em casos envolvendo questões comportamentais mais graves.

A Carolina reforça que "independente do porte, temperamento ou raça de seu cão, todos podem ser trabalhados com métodos que não envolvam dor ou medo, para aprender comportamentos desejados e aprender regras e limites da família. Educar de forma positiva não é deixar de dar limites ou ser permissivo. O cão que aprende sem dor ou medo precisa, sim, de consistência, coerência e persistência." [1]

Benefícios do adestramento positivo

Além de ser um método cientificamente comprovado para treinamento de cães, o adestramento positivo ainda traz muitos benefícios para o bem-estar do seu cachorro e para o fortalecimento da sua relação com ele. Alguns deles são:

- Construção de uma relação de confiança 

O treinamento positivo é construído com base em confiança e respeito. Ao usar reforço positivo (com recompensas, carinhos e elogios), você cria uma relação de confiança e cooperação com seu cão.

- Comunicação eficaz e recíproca

Comunicação é uma via de mão dupla. Para se estabelecer uma comunicação eficaz, não basta apenas ensinar o cão a entender o que você quer dele, você também precisa entender o que ele precisa. Uma ferramenta muito utilizada pelo adestramento positivo é o conhecimento da linguagem canina. Os cães se comunicam conosco o tempo todo e o adestramento positivo nos ajuda a entender o que eles estão querendo dizer. Isso faz com que você avance no treinamento respeitando os limites dele e também permite que você o retire de situações desconfortáveis para ele.

- Promoção de bem-estar físico e emocional

Ao contrário dos métodos punitivos, o adestramento positivo prioriza o bem-estar do seu cão, físico e emocional. Evitando o uso do castigos, agressividade, medo, dor ou intimidação, você criará um ambiente de aprendizagem seguro, reduzindo a ansiedade e permitindo que o seu cão se sinta confortável para se desenvolver mental e emocionalmente. 

- Atendimento das necessidades básicas do cão

O método positivo vai para além dos simples truques e obediência: ele visa promover uma mudança no comportamento e nas emoções do seu cão. Através desse método, é possível sim promover o controle dos impulsos e as boas maneiras, mas também é possível mudar as emoções de um cão diante de um estímulo ou gatilho. O adestramento positivo se preocupa em estabelecer uma rotina que supra as necessidades básicas do seu cão, enriquecendo o seu ambiente. Esta influência positiva estende-se para além das sessões de treino, criando um cão mais equilibrado de modo geral.

- Versatilidade e adaptabilidade

O adestramento positivo pode ser adaptado para todas as raças, idades e temperamentos. Seja um cachorro filhote e brincalhão, seja um cão mais velho e calmo, as técnicas de reforço positivo são benéficas para todos e podem ser adaptadas às necessidades e personalidades individuais de cada indivíduo e família, garantindo uma educação completa para o seu cão.

- Fortalecimento do vínculo humano-cachorro

Ao usar reforço positivo, as sessões de treino tornam-se experiências valiosas e divertidas, contribuindo para a criação e o reforço de laços entre você e seu cachorro. O seu cão associará o treino a momentos agradáveis passados com você, fortalecendo o vínculo humano-cachorro.

Como achar um adestrador positivo?

A profissão de adestrador ainda não possui regulamentação, o que dificulta muito a busca por profissionais qualificados e éticos.

Não é fácil identificar adestradores que usam métodos aversivos, pois eles não costumam abrir o jogo sobre os métodos utilizados logo de cara. Contudo, se um adestrador disser que você não irá participar do processo de adestramento no início ou usar palavras como "correção do comportamento", "controle do cão", "submissão", "líder da matilha" etc., fuja!

É ainda mais difícil identificar os adestradores mistos - aqueles que, por maldade ou ignorância, divulgam que usam métodos positivos, mas que ainda usam aversivos na educação de seus clientes.

Novamente, a Carolina explica que "dar petisco, carinho e elogio a um cão que acabou de aprender a sentar por medo NUNCA vai se relacionar com o comportamento que o cão acabou de aprender. Vai apenas MASCARAR a emoção negativa que o cão sentiu anteriormente e DISFARÇAR o real aprendizado que o cão acabou de ter. E sabe qual foi o real aprendizado dele? Ele entendeu claramente que, quando esse cara chegar, pode ser que ele dê coisas boas, mas pode ser que ele faça coisas ruins. Então, ele fica confuso, ansioso, sem saber o que esperar, no que confiar." [5]

Por isso, muito cuidado com profissionais que, a princípio, parecem super bonzinhos com o seu cão, mas que indicam dar broncas, usar guias unificadas, dar trancos durante o passeio, borrifar água no cão ou usar latinha com moedas dentro, por exemplo.  

Adestradores positivos nunca usarão ferramentas aversivas, sempre irão priorizar o bem-estar do cachorro, irão te envolver em todo o processo de adestramento e respeitarão os limites do seu cão.

Antes de contratar um profissional, faça perguntas, converse com outros clientes, busque se informar sobre o trabalho daquela pessoa. Seja exigente, afinal, é o bem-estar do seu cão que está em jogo.

Para quem não sabe por onde começar, eu sempre indico o perfil Indicação Positiva para encontrar profissionais positivos no Brasil. Esse vídeo abaixo da Carolina sobre como escolher um profissional para educar o seu cão também traz diversos pontos importantes para auxiliar nessa escolha.

Conclusão

Quando se trata da educação do seu cachorro, o adestramento positivo é a única escolha ética e eficaz. Se existe um método que funciona, que é embasado na ciência e prioriza o bem-estar do cachorro, fortalecendo o vínculo humano-cão, não deveria haver mais espaço para a utilização de aversivos no treinamento de cães.


REFERÊNCIAS

[1] Carolina Jardim. A Educação de um cão. Disponível em: <https://www.turmadofocinho.com/educacao-de-um-cao/>

[2] Carolina Jardim. Ficar sozinho: o desafio do século?. Disponível em: <https://www.turmadofocinho.com/ficar-sozinho-o-desafio-do-seculo/>

[3] Amber LaRock. Why ‘Alpha Leader’ Training Has Been Debunked In Dogs. Disponível em: <https://iheartdogs.com/why-alpha-leader-training-has-been-debunked-in-dogs/>

[4] Zazie Todd. Positive Reinforcement and Dog Training VII: Summary and Conclusions. Disponível em: <https://www.companionanimalpsychology.com/2012/08/positive-reinforcement-and-dog-training.html#:~:text=Two separate questionnaire studies by,such as fear and aggression.>

[5] Carolina Jardim. Morde e Assopra. Disponível em: <https://www.turmadofocinho.com/morde-e-assopra/>